“Ele se tornou um escravo do hábito. Sua dieta ruim, a constipação frequente e problemas nos órgãos genitais produziam uma ereção quase constante, que só podia ser aliviada pela masturbação (…) Depois de três ou quatro anos, com rezas e a adoção de uma dieta mais saudável, conseguiu controlar o vício.” Esse é um trecho do livro Plain Facts about Sexual Life (“fatos sobre a vida sexual”), publicado em 1877 pelo médico americano John Harvey Kellogg. Vegetariano convicto, Kellogg acreditava que uma dieta equilibrada poderia prevenir boa parte das doenças e, de quebra, afastar as pessoas do pecado. Não conseguiu: o prazer solitário continua sendo praticado por aí. Mas suas tentativas de criar o alimento perfeito acabaram dando origem a um império que está presente em 180 países, fatura US$ 15 bilhões por ano – e só decolou para valer depois que William, o irmão do médico, fez algo que ele simplesmente abominava.
Doutor intestino
Mesmo para os padrões da época, os Kellogg eram uma família enorme: John tinha 16 irmãos. Ele nasceu em 1852, na cidadezinha de Tyrone (Michigan). Aos 4 anos, mudou-se para Battle Creek, a 160 km dali. Nessa cidade, havia uma igreja adventista fundada pela escritora Ellen White. Ela se apresentava como uma emissária de Deus, encarregada de reunir os fiéis e ajudá-los a se preparar para a volta de Jesus Cristo à Terra – e para o apocalipse.
Os Kellogg e os White ficaram muito próximos. Ellen apadrinhou John e pagou seu curso de medicina na Universidade de Nova York. Aos 24 anos, ele voltou com o diploma embaixo do braço e assumiu a chefia do Sanatório Battle Creek, uma espécie de spa administrado pela Igreja Adventista. Ali, sua carreira decolou. John se tornou uma espécie de guru de saúde para ricos e famosos da época, como o ex-presidente americano William Howard Taft, o inventor Thomas Edison, o empresário Henry Ford, a aviadora Amelia Earhart e a atriz Sarah Bernhardt. John fazia a mesma recomendação a todos: o segredo para uma vida longa estava na beleza interior. Mais especificamente, na flora intestinal.
Ele recomendava uma dieta rica em grãos integrais, e também indicava laxantes. Para Kellogg, diversas doenças (câncer, anemia, acne, diabetes, úlcera, epilepsia, esquizofrenia) poderiam ser curadas por meio de lavagens intestinais – depois que elas eram feitas, às vezes o médico injetava iogurte no cólon dos pobres pacientes, para repor sua flora intestinal. John também pregava abstinência de carne, álcool, tabaco e alguns temperos, como mostarda e pimenta. Determinado a espalhar suas ideias, ele começou a escrever livros e cartilhas com recomendações de saúde – que, agora, já não se restringiam à alimentação.
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Kellogg acreditava piamente que o sexo fazia mal à saúde. Desencorajava a prática, argumentando que se perdia “energia vital” no ato. Acredita-se que, seguindo suas crenças à risca, o médico nunca teve relações sexuais com a esposa, Ella Eaton (1853-1920). Foram quatro décadas de casamento, sem sexo nenhum (Ella e John tiveram mais de 40 filhos, todos adotivos). Pior que o sexo, só a masturbação, que John considerava um “crime hediondo”. Ele acreditava que essa prática podia ser prevenida por meio da dieta. Mas, para casos incontroláveis, o médico recomendava choques elétricos e circuncisão sem anestesia para os homens, e injeção de ácido carbólico (fenol) direto no clitóris das mulheres.
Kellogg inventou e patenteou mais de 30 produtos, como instrumentos cirúrgicos para operações ginecológicas e gastrointestinais, equipamentos para eletroterapia, hidroterapia e fototerapia e até uma cama de exercícios. Algumas de suas engenhocas estavam na primeira classe do Titanic (que zarpou e naufragou em 1911), outras foram instaladas em castelos reais na Europa. Mas as maiores invenções de John Kellog acabariam sendo outras duas: a granola e o cereal matinal.
Kellogg versus Kellogg
Pode parecer difícil de acreditar, mas o café da manhã americano já foi ainda mais pesado que o atual. Além de ovo, pão e panqueca, incluía bife e até frango assado. Kellogg decidiu combater a azia e a má-digestão, que eram verdadeiras epidemias, e começou a pesquisar alimentos saudáveis. Em 1870, fez uma mistura de grãos de aveia, milho e trigo assados, que nomeou de “granula”. Mas James Jackson, um médico adventista de Nova York, tinha batizado um farelo integral com a mesma palavra. Pressionado por um processo judicial, Kellogg teve de mudar o termo – que passou a ser granola.
Num belo dia de abril de 1894, William Keith Kellogg (1860-1951), irmão mais novo de John, estava fazendo uma fornada de granola, mas acabou deixando a bandeja no forno por muito tempo. Quando ele foi passar a massa num rolo, o trigo se quebrou em floquinhos bem crocantes. Os irmãos resolveram tentar a mesma coisa com milho. Ficou ótimo, e os dois decidiram chamar a coisa de corn flakes. Patentearam a ideia e, em 1897, criaram uma empresa para fabricar o novo produto: a Sanitas Food Company.
Mas Will e John não se bicavam. John não tinha pretensões financeiras, pois preferia dedicar sua vida à Igreja Adventista, e só queria vender os cereais para pacientes da clínica e assinantes da revista Good Health, que ele mesmo editava. Will, por outro lado, se gabava de seu espírito empreendedor e queria ampliar os negócios. Depois de alguns anos de impasse, em 1906, Will se apossou da ideia e fundou um novo empreendimento, a Battle Creek Toasted Corn Flake Company, precursora da atual Kellogg Company. E fez algo que o irmão não aceitava: adicionou açúcar aos flocos de milho.
Foi um megassucesso, e logo surgiram diversas imitações. Só em Battle Creek, apareceram mais de cem concorrentes. John, que era o dono da patente do corn flakes, não se importava muito com isso – tanto que, em suas palestras, ensinava a plateia a fazer o próprio cereal em casa. Ao mesmo tempo, Will tocava o negócio, cada vez mais lucrativo. A empresa se tornou líder do novo mercado de cereais matinais, que cresceu em escala inimaginável e virou fenômeno global.
Isso aconteceu por três motivos. A busca por uma alimentação com menos gordura animal (considerada mais vilã que os carboidratos ao longo de boa parte do século 20), o ritmo de vida mais agitado, com menos tempo para o desjejum, e a propaganda. Sabe aquele ditado de que “o café da manhã é a refeição mais importante do dia”? Não é resultado de nenhuma pesquisa científica. É apenas um slogan, inventado por uma agência de publicidade para a General Foods, então a maior concorrente da Kellogg’s, em 1944.
Também foi uma agência, a Leo Burnett, que criou o mascote Tony Tiger para as embalagens de sucrilhos, em 1953. “Sucrilhos”, por sinal, é um termo usado apenas no Brasil – segundo a Kellogg’s, trata-se de uma junção das palavras “açúcar”, “crocância” e “milho”. O termo foi criado pelo departamento de marketing da empresa em 1961 (nos demais países da América Latina, o produto se chama Zucaritas. Nos EUA, Frosted Flakes).
Também foram os executivos de marketing da empresa que tiveram a ideia de oferecer sucrilhos para os astronautas americanos Neil Armstrong, Michael Collins e Buzz Aldrin levarem na primeira viagem à Lua, a bordo da Apollo 11, em 1969. Se a publicidade era a alma do negócio de Will (que, depois de ficar rico e famoso, passou a assinar seu nome como “W.K. Kellogg”), outras tensões ocupavam a cabeça de John.
A eugenia – e o fim
Além de brigar com o irmão, John também se desentendeu com a madrinha, Ellen, quando um incêndio destruiu o Sanatório Battle Creek, em 1902. Ela não queria reconstruir o spa, pois achava que o fogo era um sinal de Deus contra o estabelecimento, que tinha se tornado famoso demais e perdido a essência.
John não quis nem saber, e resolveu reerguer tudo. Em 1903 lançou um livro, The Living Temple (“o templo vivo”, em inglês), para levantar dinheiro e reconstruir o spa. Conseguiu.
Mas o texto, cheio de ideias religiosas, recebeu muitas críticas. John fazia afirmações panteístas (doutrina filosófica segundo a qual Deus e a natureza são a mesma coisa), e acabou excomungado da Igreja Adventista em 1907.
O médico continuou dirigindo o sanatório e tocou a vida, mas logo se envolveu em outra controvérsia: a segregação racial. Ele fundou a Race Betterment Foundation, uma instituição racista que defendia o “melhoramento genético” para preservar as populações brancas, consideradas superiores, livrando-as de condições como insanidade, retardamento mental e epilepsia. Foi um dos maiores centros do movimento eugenista nos EUA.
John, que ironicamente tinha filhos adotivos negros, passou a defender a separação genética entre americanos puros e imigrantes. “Talvez por ele ter passado seus últimos anos promovendo a eugenia, formou-se um mito, nas décadas de 1950 e 1960, de que Kellogg era um charlatão megalomaníaco”, afirma Brian Wilson, professor da Western Michigan University e autor de Dr. John Harvey Kellogg and the Religion of Biologic Living (“Dr. Kellogg e a religião da vida biológica”, sem versão em português).
Ao mesmo tempo em que apoiava a eugenia, John cuidava da própria saúde, seguindo à risca os preceitos alimentares que defendia. Por pouco não alcançou sua meta, que era viver 100 anos. Aos 91 anos, John escreveu uma carta de desculpas a Will, reconhecendo que o irmão mais novo estava certo ao transformar o cereal matinal em negócio. A secretária de John leu as sete páginas da carta e se recusou a enviá-la, por acreditar que o chefe estava se humilhando. Ele morreu alguns meses depois, em 1943. Em 1948, Will finalmente recebeu a carta – e, pouco tempo depois, também morreu. Os dois nunca fizeram as pazes.
A empresa que criaram virou uma multinacional gigante, que eles jamais poderiam imaginar. Mas, depois de crescer sem parar durante décadas, o consumo de cereais matinais começou a despencar. Entre 2000 e 2015, as vendas caíram quase 30% nos EUA (e, em 2016, o faturamento da Kellogg’s de lá caiu mais 4,5%). Para analistas do setor, o motivo é que as novas gerações de consumidores preferem um café da manhã com menos açúcar. Ou seja, mais saudável – exatamente o que, no começo da história toda, John Kellogg sonhava em inventar.
Outros gênios excêntricos
Dentro de um cientista ou inventor brilhante, muitas vezes se esconde uma personalidade amalucada. Conheça algumas:
DUENDE DO TUBO DE ENSAIO
Quem: Paracelso (Philippus von Hohenheim), médico (1493-1541).
O que ele fez: Inventou o primeiro remédio para sífilis e fez estudos importantíssimos sobre toxicologia e infectologia. Também escreveu sobre duendes e ninfas e propôs experiências bizarras: queria misturar sêmen humano com esterco para criar um “homúnculo”, de 30 cm, dentro de um tubo de ensaio.
O FESTEIRO
Quem: Tycho Brahe, astrônomo (1546-1601).
O que ele fez: Estudou o movimento dos planetas, reunindo dados essenciais para o entendimento do Sistema Solar – tudo isso sem usar telescópio. Também era um alcoólatra incontrolável, que tinha um anão e um alce de estimação e dava festas alucinantes: em uma delas, em 1566, Tycho perdeu metade do nariz ao desafiar seu primo para um duelo de espadas.
O ONÍVORO
Quem:William Buckland, geólogo (1784-1856).
O que ele fez:Descobriu o primeiro fóssil de dinossauro: uma mandíbula do carnívoro megalossauro, encontrada em 1824. Também era conhecido pela dieta bizarra, que incluía ratos com torrada, urina de morcego e moscas varejeiras. Buckland ganhou tanta fama por isso que uma lenda da época, provavelmente falsa, dizia que ele comeu o coração empalhado do rei Luis 14.
VIAJANTE DO ESPAÇO (E DAS IDEIAS)
Quem:Jack Parsons, engenheiro (1914-1952).
O que ele fez: Inventou o primeiro foguete espacial dos EUA, em 1936. Depois de fazer isso, se converteu à Thelema, doutrina religiosa que foi criada pelo ocultista inglês Aleister Crowley e professa magia e paranormalidade. Por isso, acabou expulso do Jet Propulsion Lab, órgão que antecedeu a Nasa. Aí entrou em outra seita: a Cientologia.
FILHO DE ALIENS
Quem: Francis Crick, biólogo (1916-2004).
O que ele fez: Descobriu a estrutura molecular do DNA e, junto com James Watson e Maurice Wilkins, ganhou o Nobel de Medicina de 1962. Mas também achava que a vida na Terra foi “semeada” por uma civilização alienígena hiperavançada – e que os ricos deveriam ter mais filhos do que os pobres, pois isso ajudaria a aperfeiçoar o genoma humano.
O MASOQUISTA AUTOMOTIVO
Quem: Lawrence Patrick, engenheiro (1920-2006).
O que ele fez: Inventou os crash test dummies, bonecos usados em simulações de acidentes de carro. Mas, antes de criar os bonecos, ele passou 15 anos testando as batidas em si mesmo: se amarrava a uma cadeira especial, que acelerava até colidir contra um obstáculo. Morreu em 2006, aos 85 anos, de Parkinson.